segunda-feira, 11 de abril de 2016



Não Acabou

Capítulo I


 ... “ Eu estou aqui com você agora. Nada e nem ninguém vai poder nos separar.” Ela olhou para ele, tentando buscar em seus olhos a confirmação dessas doces palavras, que há tanto tempo queria ouvir...

         Um final feliz. Laura fechou o livro e ficou perdida em seus pensamentos. Um lindo final para uma longa história de amor, que nem a morte tinha conseguido destruir. Mas aquilo era um romance. O que os romances têm a ver com a realidade? Provavelmente nada. Pelo menos não com a sua realidade. Afinal, a sua vida mais parecia uma sequência de eventos sem nexo do que outra coisa, porque, até agora, nada parecia fazer muito sentido! Aí está você de novo, com pena de si, pensava ela. Mas parecia que era preciso mergulhar nessa pena, afinal, ela estava sofrendo! Isso parecia um círculo vicioso: sofrer, ter pena, raciocinar a respeito da pena, chorar por isso e sofrer...

Laura abriu novamente o romance na última página. Era como se aquelas poucas linhas entoassem um canto de esperança em seu coração. Claro, mas é claro, pensou ela, a Arte imita a vida, ou será que a vida imita a Arte? Não me lembro mais. Na dúvida, eu vou acreditar que a vida imita a Arte! E é assim que vai ser, de agora em diante. Eu preciso acordar e procurar o fio da minha vida que ficou perdido em algum lugar ou   emaranhado em algum galho seco.

Havia meses que Laura estava mergulhada nessa total letargia emocional. Era como se tivesse o coração cristalizado na dor e no sofrimento, impedindo qualquer movimento para a vida. Mas, afinal, ela tinha bons motivos! Era o que ela sempre dizia para si mesma. Bons motivos! “Um” bom motivo, para ser mais exata. E que motivo! Aliás, o dito motivo tinha até nome: Eric. Como é bom, quando sabemos exatamente o que nos deixa deprimido. Ela riu de si mesma. Quanto cinismo. Mas é sempre melhor rir do que chorar!

O telefone interrompeu seus pensamentos, lembrando-lhe, vagamente, que existia algum tipo de vida inteligente em volta dela, vida, que, em nenhum momento, deixara de correr, totalmente alheia à sua dor. Deve ser ele, pensou ela. E, logo em seguida, a recriminação. Outro círculo vicioso: sofrimento, telefone tocando, é ele, não, sua boba, não é ele, decepção, sofrimento... Pelo jeito, ela tinha desenvolvido uma capacidade invejável de criar círculos... viciosos...

O telefone já devia estar tocando havia um certo tempo, porque a voz de Amanda era inconfundível quando ficava impaciente.

Laura sorriu ao imaginar a expressão no rosto da amiga. Aqueles olhos azuis deviam estar faiscando! E, provavelmente, Amanda devia estar andando de um lado para o outro, segurando o telefone entre o queixo e o ombro e fazendo mil coisas ao mesmo tempo!

- Mas, o que você estava fazendo? O seu telefone deve ter tocado umas quatrocentas vezes! Fez alguma promessa de não mais atender telefone? Se fez, me exclua já dessa promessa! E a gargalhada sonora da amiga a fez rir.

- Eu estava um pouco atrapalhada aqui com algumas coisas, desculpou-se Laura, sabendo que não convenceria a amiga.

- Atrapalhada com algumas coisas, sim, claro. Entendo e acredito,  riu Amanda.

Já se conheciam há tanto tempo, que as palavras não eram mais necessárias. Bastava um tom de voz. Um tom de voz... Como num sonho, Laura escutou de novo aquela voz. Obrigou-se a voltar à realidade. Amanda queria saber a que horas iriam se encontrar para levar as crianças ao cinema. Rapidamente o horário foi combinado. A vantagem das “coisas concretas”, como Laura costumava dizer, é que tudo se resolve de maneira prática e rápida. Bem diferente das coisas do coração...

De tarde elas teriam a oportunidade de conversar. Agora era preciso voltar à realidade ou ninguém almoçaria hoje! Afinal, era dela que dependia a existência, ou não, de alguma comida na hora do almoço. Dignas provedoras da subsistência do lar, como ambas costumavam brincar.


Laura desligou o telefone e era como se o sonho voltasse e tomasse conta dela. A voz... A lembrança daquela voz tinha a capacidade de mergulhá-la na mais profunda tristeza. Assim tinha sido ao longo dos últimos meses. Mas parecia que hoje era diferente. Aquela voz... De alguma maneira era como se dissesse: viva! Pela primeira vez, Laura sentia a luz da esperança nascer dentro dela. O romance... Claro, pensou ela. É isso, a vida imita a Arte. Então, imitemos a Arte! Laura sorriu. Que infantil estou sendo! Mas não importava, sentia que esse era seu caminho, buscar o fio de sua vida, retomá-lo em suas mãos e tecer, guiada pelas mãos de fada de sua alma, o lindo bordado de sua vida.

Laura levantou num salto e foi se arrumar. Afinal, uma pessoa que tomou uma decisão tão importante não pode sair sem estar adequadamente arrumada! Mas, o que é estar “adequadamente arrumada”? Como, uma pessoa que tomou esse tipo de decisão, deveria se arrumar? Laura riu. Não importava como, importava, sim, ela ter a vontade de se arrumar!

Já na frente do espelho, Laura olhou para sua imagem refletida. Já fazia algum tempo que não tinha mais prestado muita atenção em seu reflexo, era como se este não lhe pertencesse. Mas hoje parecia estar diferente. Era como se tivesse algum brilho especial. Devo estar sonhando, pensou ela. Mas não estava. Sou eu mesma. O que aconteceu comigo? De onde vem esse olhar brilhante, tão intenso? Esse sorriso... Sorriso? Estou sorrindo! Isso sim é uma grande conquista, exultou ela. Nem era preciso analisar muito esse sorriso, pelo simples fato dele existir, ali, bem estampado em seu reflexo! E, desenhado com batom, ficava mais iluminado ainda! Laura gostava do seu sorriso, mas já o tinha esquecido havia um bom tempo. Reencontrá-lo deu-lhe grande satisfação.

Era curioso como seu cabelo tinha crescido. É como se eu tivesse hibernado, pensou ela. Ela não tinha percebido o quanto o seu cabelo estava lindo, cheio de vida! Era como se ela tivesse ficado dentro da crisálida por todo esse tempo e agora estivesse rompendo a casca e se libertando. O reflexo no espelho lhe lembrava as cores de uma linda borboleta, abrindo suas asas para a vida. Laura gostou dessa comparação. Era isso mesmo! O reflexo era maravilhoso, lindo e vibrante! Se ele visse... De novo! Não era possível, ele de novo! Mas desta vez, não havia círculo vicioso. Desta vez, era o início: se ele me visse... Ele vai me ver! Mas eu estou diferente e as coisas vão ser diferentes.
 Sim, porque “as coisas” não tinham sido muito positivas até então. Enquanto ela ia até a feira comprar frutas, as lembranças tomavam conta dela. Mas não eram mais lembranças tristes. Eram lembranças lindas suaves como o sol que brilhava entre as árvores. O sol brilhava, o sorriso dele brilhava. No chafariz, os passarinhos tomando banho, as gotinhas de água cintilando ao sol... a suave brisa entoando uma linda canção nas árvores, a voz de Eric, profunda e melodiosa. Laura sorriu ao lembrar a expressão em seu rosto, os seus olhos, escondidos atrás dos óculos de sol, como uma criança que se esconde atrás de um galho de árvore, convencida de que ninguém a está vendo. Os óculos eram inúteis, ela sabia como ele estava se sentindo pelo simples tom de sua voz. Ela sempre soubera o que ele sentia. A sua voz era a voz de sua alma. Desde o início, a comunicação entre os dois dispensara palavras. 
- Quanto a senhora vai querer? 
A realidade a estava chamando.
- Quanto o quê? Ah sim, claro! Morangos... Eu vou querer duas caixas, por favor.
- Vai ai duas caixas, dona! 

O sorridente rapaz  da banca de frutas lhe entregou as duas caixas de morangos. Morangos vermelhos, como aqueles no dia do banho dos passarinhos no chafariz. Tequila com morango... Era o que tinham tomado distraidamente, enquanto tentavam se descobrir. O morango era doce como o sorriso dele. Tinha sido uma tarde mágica. Era como se, após anos de busca, seu coração tivesse achado seu lar ao lado dele.
Morangos... Com certeza isso não seria o suficiente para o almoço! Era preciso correr para terminar de fazer a feira! Peixe seria uma ótima ideia ... Que veio acompanhada de mais lembranças... O mar. Ele falava tanto do mar. Fez com que ela visse essa imensidão de uma maneira diferente. Até então, o mar era, para ela, uma maravilhosa dádiva de Deus, romântica e profunda, porém silenciosa e quase sem alma. Mas ele a tinha feito entender que o mar é vida... Nada do que pertence ao mar deve ser tirado dele. E hoje... Não haveria peixe para o almoço! A relação que ele tinha com o mar não chegava a surpreendê-la. Era natural que, um homem sensível e vibrante como ele, se identificasse com a imensidão azul... E fizesse desta, um habitat natural e sagrado.
Rapidamente Laura terminou a feira e voltou para casa. Esse almoço, tinha que resolver isso logo! A essa hora, Amanda devia estar buscando os seus filhos na escola. E ela, aqui ainda! Era preciso se apressar! Seria preciso muita sorte e um passe de mágica para conseguir preparar o almoço e ainda buscar Samantha na escola! Era preciso estarem prontas logo depois do almoço para irem ao cinema.
Já em casa, foi sem pensar em nada que ela conseguiu preparar algumas coisas que, milagrosamente, transformaram-se em delícias gastronômicas (modéstia à parte, é claro). Em tempo, foi buscar Samantha.
- Você está tão diferente, exclamou Samantha, fitando-a com uma expressão de surpresa em seus olhinhos esverdeados e cheios de vida.
Um lindo sorriso iluminava seu rostinho. Laura sorriu também, sem saber o quê dizer. 
- Diferente? Me acha diferente, perguntou. – Bom, talvez seja o batom novo que passei.
- Não, mãe, é você, respondeu Samantha.
Então era isso, era ela mesma. Era a decisão tomada... Que a estava mudando. Isso era fantástico! Como uma simples frase de um romance “água com açúcar” podia estar causando tantas mudanças em tão pouco tempo? Porque, em algum lugar, bem lá no fundo da alma, ela tinha sido tocada... A frase mágica, assim como as tardes passadas com ele. Assim como todos os momentos que eles tinham compartilhado. Assim como cada segundo em que ela tinha escutado sua voz. E há momentos na vida onde só um toque mágico consegue nos alcançar...
- ... E a escola pediu pra gente levar alimentos não perecíveis para ajudar essas pessoas, explicava Samantha.
- Que pessoas, perguntou Laura um tanto confusa: não tinha escutado nada do que Samantha dissera. 
- Mãe, as pessoas da favela que ficou alagada. Elas perderam tudo!
“Elas perderam tudo”. Essa frase ecoou forte no fundo do coração de Laura. Havia pessoas que tinham perdido tudo, tudo mesmo. E dependia de outras que elas não perdessem a esperança. Essa luz que ilumina todo ser humano quando tudo está acabado.
- Claro que vamos ajudar essas pessoas, querida, disse Laura. – Quando chegarmos em casa, vamos separar algumas peças de roupa, lençóis, cobertores, brinquedinhos.

Lucas já estava em casa quando as duas chegaram. E Samantha continuou tagarelando, antes, durante e depois do almoço!
Enquanto ela tagarelava, Laura não se cansava de olhar para a filha. Logo a menina ia fazer doze anos. Já uma mocinha! Tão cheia de vida! Ela lembrava tanto o pai dela. Realmente, eles eram muito parecidos.
- Isso vai depender a que horas a festa vai terminar, dizia Lucas.
- Tarde pai, bastante tarde. 
O olhar de assombro de Lucas fez Laura sorrir.
- Tarde? O que você quer dizer com tarde, perguntou Lucas.
- Tipo, uma da manhã.
- Uma, uma da manhã, exclamou Lucas. – Mas, por que tão tarde? Não precisa terminar tão tarde!
- Mas, pai! Não é tão tarde assim! A gente já é pré-adolescente, não tem cabimento a festa acabar cedo!
Laura olhou para Lucas. Aquele sorriso que parecia um sol. Ele estava fitando a filha, sorrindo, atônito e soltou uma gargalhada.
- Samy, para mim, vocês são pós-nenês!
Samantha ficou vermelha de indignação.
- Pós-nenês! E você é um pós-quarentão!
A expressão de Lucas era de fazer qualquer um se jogar no chão de tanto rir. Ele era mestre em caretas! Laura logo interrompeu a pseudo-briga para que todos chegassem a um acordo.
- Daqui a pouco Amanda chega e nós estaremos todos ainda almoçando! Lembra que combinamos de ir ao cinema com ela e os meninos? Sem contar, querida, que vamos separar aquelas coisas que você quer levar para a escola, para as pessoas castigadas pelas enchentes. E do jeito que vocês dois estão tagarelando, vamos precisar de um dia com trinta e seis horas para ter tempo de fazer tudo!
Samantha riu e levantou correndo da mesa, não sem antes frisar:
- Pai, então você leva a gente e vai buscar. Obrigada, Você é o melhor paizinho do mundo!
Deu um abraço afetuoso em Lucas e, sem lhe deixar uma chance de responder, saiu correndo da cozinha, gritando qualquer coisa sobre escolher as peças que iria levar  na segunda-feira para as vítimas das enchentes.

Já era de noite quando Laura sentou na varanda da casa. Ela tinha chegado do cinema no final da tarde. Tinham sido horas agradáveis. Como sempre quando estava com Amanda e as crianças. Como “pré-adolescentes” que se prezam, as crianças tinham ficado sozinhas no cinema enquanto as duas amigas tinham papeado à mesa de um café. A maior parte da conversa tinha girado em torno da “querida e adorada” sogra de Amanda. Ela iria para a praia com eles, no dia seguinte, impondo sua presença nem um pouco bem-vinda. Amanda estava amarga e ranzinza. As horas tinham voado e as crianças já estavam de volta, tagarelando, é claro!
- O filme foi dez, né, exultava Samantha, tentando iniciar um relato detalhado do enredo e sendo imediatamente interrompida por Paulo e, naturalmente, por Bruno também, afinal, ele sabia contar o filme tão bem quanto o irmão!
Laura sorriu ao lembrar a tarde agitada. Mas agora ela precisava trabalhar. Desanimada, fitou a pilha de livros à sua frente. Preciso me concentrar e preparar as aulas de segunda-feira, pensou a contragosto. 
Fazia um ano que Laura dava aulas de História para adolescentes. Ela tinha resolvido recomeçar a trabalhar, depois de ter ficado em casa, cuidando de Samantha, durante anos. No começo, ela achava que não ia conseguir, pois, após tantos anos sem trabalhar fora de casa, pensava que não teria chance nenhuma de se reciclar. Mas, aos poucos, tinha se adaptado à nova rotina. Ela sorriu ao lembrar os primeiros dias, quando tivera de enfrentar aqueles adolescentes. “Aborrecentes”, como diria Amanda. Mas, não. Não eram “aborrecentes”. Eram pessoas maravilhosas, cheias de vida e de sonhos. Era preciso prestar atenção e escutar o que eles tinham a dizer. Rapidamente, Laura tinha aprendido a respeitá-los e admirá-los. Não era de se estranhar que todos tinham desenvolvido um interesse particular pela aula de História! A professora Laura era uma unanimidade entre os adolescentes da escola, até de outras classes, que sempre a procuravam quando precisavam de algum conselho, de alguma ajuda ou apenas de um ombro amigo. Ela tinha o dom natural de atrair as pessoas, independente da idade. Carisma e simpatia sempre tinham feito parte de sua personalidade.
A nova turma que tinham lhe dado esse ano parecia ser tão vibrante quanto a do ano passado. Provavelmente, um novo desafio para ela. Vou precisar de toda a minha energia esse ano para enfrentar isso, pensou ela. Samantha, Lucas, duas classes, a casa, Eric... Ou seria Eric, Lucas, Samantha, duas classes, a casa? Não importa, pensou ela. A ordem dos fatores não altera o produto! E, pelo visto, o produto, este ano, era o seguinte: “Como resolver a sua vida sem perder o fio da meada”. Laura riu. Isso soava como um manual de Neurolinguística! Num flash, ela revia nas prateleiras de livrarias títulos do tipo: “Seja bem-sucedido, planeje sua mente”, ou, “Descubra o Homem (e por que não a mulher) de negócios que existe dentro de você”. Infelizmente, o coração e as emoções não podem ser planejadas, lamentou ela. Voltando ao “produto deste ano”, ele será desafiador... Disso, Laura tinha certeza absoluta. 

Era mais de meia noite quando Lucas chegou em casa. Laura nem o tinha escutado chegar, imersa como estava em seus livros de História. Ele a fitava, sorridente. Muitas vezes ela tinha se perguntado se o sorriso era proposital, para se redimir por ter saído com os amigos (coisa que ele fazia apenas algumas vezes por ano, mas isso sempre a tinha incomodado...) ou se o sorriso era autêntico, verdadeiro e sincero, por ele estar feliz em vê-la.
- Volta ao mundo do mortais, brincou ele. 
Lucas estava sorrindo, de verdade, ela não tinha mais dúvidas disso. Ele a abraçou e sentou (jogou-se na cadeira ao seu lado...), exausto, esticou o corpo todo como costumava fazer quando estava cansado e olhou com uma careta para a pilha de livros na mesa.
- Há quanto tempo você está aqui estudando esses livros empoeirados, perguntou ele.
Laura riu. Estudar nunca tinha sido o forte de Lucas. Sua fabulosa memória sempre tinha sido uma grande aliada na escola para ele. Bastava ler um texto uma vez e ele se lembrava de tudo. Que sorte, pensava ela e que inveja! Afinal, ela precisava reler quatrocentas vezes um mesmo texto para fixar alguma coisa!
- Deve fazer umas duas horas que estou pesquisando, respondeu ela. Preciso preparar as aulas da semana que vem e tem tanto material! Quando os meus alunos virem o conteúdo da matéria, vão se arrepender de ter me falado que me achavam a professora mais dez da escola! Com certeza vão ser tomados de ímpetos inquisitórios! Queimem a bruxa e todos os seus malditos livros empoeirados!
- Uma bruxa bem atraente, eu diria, riu Lucas. Mas sem dúvida nenhuma, uma bruxa, que me enfeitiçou já faz tempo!
Ele ficava irresistível quando falava daquele jeito. Enquanto ele levantava para pegar um vinho, Laura o observou. Lucas era um homem atraente, extremamente charmoso e magnético. Ela sempre tinha se sentido atraída por ele, desde que tinham se conhecido, quase vinte anos atrás, na festa de aniversário de  vinte anos de Amanda. Por algum acaso do destino, Lucas tinha ido à festa, junto com um amigo de Amada. Ele sempre dizia que, como não tinha nada melhor para fazer naquela noite, tinha resolvido acompanhar o amigo. E, pronto, ele que queria ser livre pelos próximos dez anos, tinha sido “fisgado” irremediavelmente! Ela o tinha “fisgado”... Na verdade, ela sempre tinha se perguntado se realmente o tinha “fisgado”. Laura sempre tivera a impressão que ele era inatingível. Era como se um muro invisível estivesse sempre entre os dois. Ela sempre o tinha achado irresistível, inteligente, charmoso, um homem e tanto, como costumava dizer. Mas, parecia que nunca tinha conseguido tocá-lo, de verdade. Era como se cada um estivesse em um dos trilhos do trem, andando sempre juntos, mas, sem que suas almas conseguissem se tocar.


Capítulo II


Já passava das dez da manhã quando Laura acordou. Ela olhou para o lado e não ficou surpresa ao ver a cama vazia. Lucas já devia ter saído. Mas é claro que saiu, você não lembra que ele te deu um beijo de bom dia, uma eternidade atrás? – pensou ela. Lucas costumava acordar cedo, as dorminhocas eram ela e Samantha que, por sinal, ainda devia estar sonhando!

         Aos poucos, os acontecimentos da noite anterior voltavam à sua memória. Ela devia ter adormecido na grama! E não se lembrava de mais nada. Sorriu ao imaginar Lucas tomando-a em seus braços e levando-a até a cama, no andar de cima... Ainda bem que era atlético! Tinha sido maravilhoso, como sempre... Lucas era um homem maravilhoso, na cama, na grama...generoso e carinhoso. Talvez não fosse romântico, mas quando queria, podia ser extremamente carinhoso. Ainda sorrindo, relembrou os momentos deliciosos passados no jardim. O sorriso abandonou seus labiosa quando se lembrou de uma certa frase que Lucas tinha murmurado em seu ouvido: - você está diferente hoje. Era o que ele tinha dito, entre um beijo e outro, olhando-a fundo em seus olhos. Ele também tinha percebido a mudança. Ainda não tinha perguntado qual poderia ser o motivo dessa mudança, afinal, não havia tido tempo ainda para isso. Mas, com certeza, iria perguntar, mais cedo ou mais tarde. Laura rezou para que, em nenhum momento, ele pudesse adivinhar o motivo real da mudança ou o motivo pelo qual ela tinha passado tantos meses tristes, arrasada. Bem que ele tinha perguntado várias vezes o porquê de tanta tristeza. Ela sempre tinha tentado explicar que era uma fase ruim que estava atravessando. Tinha usado a desculpa da sua volta ao trabalho, dizendo que o ano na escola estava sendo difícil, muito desafiador (afinal, voltar ao trabalho após dez anos afastada e enfrentar leões, isto é, adolescentes... não era a tarefa mais cômoda de sua vida!). Pela reação de Lucas, ela pensava que ele tinha acreditado em suas palavras. Mas depois daquela frase na véspera - ela estremeceu – uma cruel dúvida tomara conta dela. E se ele, na verdade, nunca acreditara nela? E se ele soubesse de tudo? Mas por que não dissera nada então? Eram inúmeras perguntas que começavam a surgir na mente de Laura. O que vou fazer? Dizer toda a verdade? Não, ele não merece passar por tal sofrimento. Então, o que fazer? Eu preciso deixar o tempo correr, para que cada coisa seja colocada em seu lugar. Ela precisava fazer, do tempo, seu aliado.

         Já mais calma, começou a raciocinar. Não posso deixar que o medo me paralise novamente. Ela tinha tomado uma decisão e iria até o fim. Precisava ver Eric. Precisava resolver sua vida. Como ela iria fazer isso, ainda não sabia. Mas tinha a certeza, desde a véspera em frente ao reflexo no espelho, que iria retomar o fio de sua vida em suas mãos. Está na hora de eu procurar um caminho, não posso mais ficar paralisada na dor da perda. Sim, porque era uma “perda”. Ela e Eric tinham decidido não se ver mais, não se falar mais. Em outras palavras, tinham decidido colocar um ponto final no relacionamento. Mas tinha sido uma decisão difícil de ser cumprida. Vários meses tinham sido necessários para que, definitivamente, conseguissem não mais se falar. Existiam circunstâncias que impediam que ficassem juntos, ambos casados, ela tinha uma filha. E havia Lucas... O destino tinha reservado uma cruel surpresa: ter que fazer uma escolha entre dois homens, ambos maravilhosos, ambos apaixonados por ela, cada um à sua maneira. Mas, nesse meio termo, Laura tinha percebido que não podia ficar sem Eric. Que precisava dele, de seu carinho, de seu amor. Ela tinha percebido que, de verdade, não queria mais essa separação, por mais difíceis que fossem as circunstâncias. Mas Eric tinha sido irredutível. Era mais fácil para ele aguentar a separação do que enfrentar o que viria se resolvessem ficar juntos. Destruição e depressão. Laura sabia que ele tinha razão. Pois, para ela, também seria difícil, senão impossível, separar-se do marido. Mas não conseguia se conformar em perder Eric. Era uma escolha difícil, impossível. Ela sabia que tinha que escolher. Uma cilada do destino. Eric a tinha poupado dessa escolha, saindo de sua vida, não mais tentando desestabilizá-la. A separação tinha sido consequência direta dessas palavras. Ele a amava demais para lhe impor uma escolha que, ele sabia, era difícil. Ele sabia o que ela iria ter que enfrentar e havia Samantha. Ele sabia que, para ter Laura, teria que pedir a ela que destruísse sua família. Não houver destruição.  Mas a depressão não faltara ao encontro... Os meses seguintes à separação tinham sido meses de luta constante para não mergulhar nessa depressão. Ela tinha-se agarrado com unhas e dentes à sua filha, às aulas, aos seus alunos, sempre inventado novos desafios. E Lucas... Ele tinha sido o seu colo. Em silêncio. Esse silêncio. Claro, ele deve ter sentido que alguma coisa não ia bem – pensou ela.

         O telefone a arrancou de seus pensamentos. 

         - Bom dia, dorminhoca! Como foi ontem à noite? Conseguiu preparar as suas aulas para a semana que vem? Samantha demorou para dormir? Lucas chegou muito tarde?

         Laura riu. Amanda não mudaria nunca! O seu passatempo favorito era bombardeá-la de perguntas. Mas Laura a conhecia muito bem e sabia que a amiga esperaria com paciência a resposta a todas as perguntas. Todas, porque nunca, nenhuma, podia ficar sem resposta!

         Em poucas palavras, ela contou como, com uma certa dose de psicologia maternal (aquela em que um “não” sonoro saiu de sua boca quando Samantha insistiu para ficar acordada até tarde), ela tinha conseguido convencer a filha a ir dormir. Claro, porque a véspera tinha sido um dia atribulado para todos. Cinema, piscina, brincadeiras um tanto cansativas que as crianças adoravam organizar no jardim: subir em árvores, jogar bola, jogar umas às outras n´água, na terra e outras tantas coisas que deixavam Laura sem fôlego só de lembrar! Afinal, ela precisava, sem falta, preparar essas aulas e Samantha teimava em querer tomar o lugar de sua sombra. 

         As duas amigas riram e filosofaram sobre o curioso fato de que todos os filhos escolhem justamente aqueles momentos onde as mães mais precisam de tranquilidade, paz e sossego, para usurpar o lugar de suas sombras. 

         - Mas, voltando ao assunto - continuou Laura, Lucas chegou por volta da meia-noite, acho.

         E contou como ela ficara mergulhada em uma tonelada de livros empoeirados, como costumava dizer Lucas, até ele chegar, sorridente, feliz. Falou do vinho, falou da grama (sem entrar em pormenores, obviamente).

         - Ele percebeu que estou diferente, - disse Laura.

         - Ele perguntou alguma coisa? Indagou uma Amanda apavorada. Ele sabe?

         - Não, não perguntou nada, - replicou Laura. Mas vai perguntar, tenho certeza. Ele me conhece muito bem e sabe, há muito tempo, que alguma coisa está acontecendo.

         - E o que você vai fazer se ele descobrir? Pergunto Amanda, quase aos gritos.

         Laura tentou tranquilizar a amiga. Desde o início, Amanda parecia estar mais apavorada do que ela própria. Sempre tentara dissuadir a amiga de se envolver com o Eric.



Capítulo III


Como toda vez que Amanda falava com Laura, um mal-estar inexplicável tomava conta dela. Na verdade, não era mais tão inexplicável. Tinha levado certo tempo para ela poder definir, exatamente, o quê sentia. Era inveja. Admitir a si mesma que sentia inveja da amiga, tinha sido difícil. Sentia-se culpada e uma “monstra”,  como ela costumava dizer,  por sentir um sentimento que ela sempre tinha qualificado de “baixo”. E, depois que Laura começara a lhe contar seu relacionamento com Eric... Ela tinha se tronado uma “invejosa”... O discernimento de Amanda não conseguia ir além dessa constatação e isso a tornava muito infeliz, fazendo-a se sentir indigna da amizade que Laura tinha por ela. Amanda não conseguia enxergar que a inveja que ela sentia da amiga, não era uma inveja negativa e destrutiva. Ela ainda não tinha percebido que, o quê Laura tinha despertado nela, era a vontade de encontrar um grande amor, a vontade de viver. Quando ela conversava com a amiga, o efeito das palavras de Laura ainda era muito confuso. Ela só percebia nitidamente que havia dois homens apaixonados pela mesma mulher. Que cada um a amava à sua maneira, mas com igual intensidade e sinceridade, sem querer absolutamente nada em troca, também não era percebido por Amanda. Esse tipo de sentimento ia além de sua compreensão.

Mas, de uma coisa ela tinha certeza, Laura tinha sorte. Era amada e desejada. E era amada e desejada por dois homens maravilhosos. Eram raros espécimes em extinção... E Laura tinha os dois para ela! Mas também, ela é tão linda! Aquele cabelo castanho avermelhado, aqueles olhos cinza, aquele rosto sempre iluminado por um sorriso franco e dentes perfeitos! E o seu jeito meigo? E a simpatia? E sua força interior? Sim, porque Laura transmitia uma força interior cativante! Eu posso entender por que Eric se apaixonou por ela e por que Lucas a tem como o centro de sua vida! Amanda tinha que admitir que Laura era uma mulher muito especial e admirável. 

Na verdade, ela não chegava a ser “linda” como a amiga a enxergava. Seu rosto era longe de ser simétrico, olhos grandes, nariz um tanto fino demais (ela detestava seu nariz). Quanto à boca, também não era uma boca “perfeita”, pois era um pouco grande demais... Para os padrões vigentes... Mas combinava com o resto do rosto. O conjunto era extremamente charmoso. O quê a tornava linda,  era aquele sorriso encantador, que nunca abandonava sua boca, aquele olhar único e especial, límpido e sincero. Quando ela pensava nisso, Amanda  sorria, aliviada, porque, apesar dessa maldita inveja – ainda preciso aprender a vencer essa inveja – ela adorava a amiga. Ela a adorava e a admirava e ficaria sempre de seu lado, apoiando-a em qualquer decisão que tomasse.

Fazia muitos anos que Amanda conhecia Laura. Mais de vinte! Uma vida! Elas eram inseparáveis, desde o início do colegial (bom, quando ainda se chamava Colegial...). Era incrível como o tempo tinha passado rápido. Parece que foi ontem que eu a conheci. Laura e Alex estavam na sua classe e eles costumavam fazer parte da “Turma do Fundão”. Amanda riu ao lembrar as bagunças homéricas que essa turminha costumava fazer,  bagunças geralmente lideradas por Alex. Ela suspirou ao lembrar-se dele. Um homem e tanto, esse Alex. Mas, por algum motivo do destino, ele nunca tinha se interessado por ela. Isto é, para serem namorados. Porque amigos, isso eles sempre tinham sido.  Quantas vezes Alex não tinha chorado suas mágoas em seu ombro? Se é que se pode falar assim a respeito de um homem impenetrável e “durão”... “Chorar” suas mágoas... Amanda sorriu. Digamos que “comentar” o quê o deixava fora de si, raivoso e nervoso, isso sim! Ou quantas vezes ele não tinha conversado durante horas, com ela, a respeito dos sonhos de cada um? E quando ela ia se casar... Ele tinha sido o primeiro  a saber e o sorriso de alegria sincera e o apoio que ele tinha lhe dado a tinham convencido, de vez, que ele, realmente, não queria nada com ela, além de amizade. Mais uma vez a frustração, sentimento tão conhecido por ela, tomara conta dela naquele dia. Ela podia dizer adeus a Alex, pois jamais o teria. Ela ia se casar e ele  parecia estar muito feliz com isso.

Amanda suspirou. Era um episódio, na sua vida, que ela nem gostava de lembrar.  Afinal de contas, por que me casei com Marcos?  Mais uma vez, ela chegava à mesma conclusão. Tinha se casado com ele porque era o melhor amigo de Alex e ela pensava que, assim, despertaria o ciúme de Alex. Mas, para a sua surpresa e frustração (e seu ódio, também), ele tinha ficado feliz por ela. E, por pura vontade de se maltratar, como se fosse um castigo contra ela mesma, ela tinha levado esse noivado adiante, casando com Marcos, três meses mais tarde. Com os anos, tinha percebido que, o verdadeiro motivo, era uma secreta esperança que ela guardava, no fundo do coração, de que Alex perceberia, com o tempo, que gostava dela e que iria lutar para tê-la de volta (como se alguma vez a tivesse tido...).  Eu viajei todo esse tempo! Ele nunca me amou e eu, tonta, estraguei a minha vida, tendo esperanças insensatas! Como pude ser tão boba?  Ela estava casada havia mais de quinze anos, tinha dois filhos e não amava o marido. Uma lúgubre constatação. Quando Laura tinha conhecido Eric, era como se um vendaval tivesse passado pela sua vida cinzenta. A paixão que unia os dois era como um alarme tocando em seu coração, mostrando-lhe que precisava acordar. E era esse amor entre Laura e Eric que a deixava com inveja. De repente, Amanda estava começando a entender o motivo de sua inveja em relação à Laura. Ela nunca tinha conhecido esse tipo de amor. Não, na verdade tinha conhecido, sim, mas não tinha sido correspondida. Alex nunca tinha e nunca iria corresponder. Laura tinha despertado nela a vontade de ter um grande amor iluminando sua vida e, ultimamente (mais precisamente de um ano para cá), o quê ela sentia por Alex, tinha voltado com força total, derrubando todas as barreiras que sua razão tinha construído ao longo desses anos.

Mas havia mais um problema. Aliás, dois problemas. Alex tinha se casado um ano atrás. Após anos de solteirice convicta, alguma mulher havia conseguido derreter seu coração. Parecia uma façanha um tanto impossível, mas, parecia que Vanessa havia conseguido. Parecia ironia do destino, justamente quando Amanda descobria que precisava  ir em busca de seu grande amor, ele lhe era arrebatado por outra! Mas, depois ela pensaria nisso. Havia outro “problema” e, este, parecia bem mais difícil de ser resolvido: Laura...  sua própria amiga... Ela sabia que existia alguma ligação especial entre ela e Alex, sempre havia sido assim. Eles tinham chegado a namorar alguns meses, mas rapidamente o namoro tinha acabado, por eles serem muito diferentes um do outro. Mas havia alguma coisa inexplicável que os unia e eles tinham preferido ficar amigos para não desgastar o quê sentiam um pelo outro. E parecia que tinham feito a escolha certa, pois quase vinte anos depois, eles continuavam unidos como nunca e nada e nem ninguém tinha conseguido separá-los. Vanessa tinha que engolir em seco os telefonemas e os almoços (raros, porém existentes) que os dois costumavam  ter juntos. Bem que Vanessa tinha conseguido fazer valer sua vontade de não ter Laura como testemunha de casamento de Alex. Mas ela nem desconfiava que, o verdadeiro motivo pelo qual ela tinha conseguido essa “façanha”, era porque a própria Laura tinha convencido Alex de que ela não ficaria chateada com isso. Mais uma vez, Amanda tinha comprovado o quanto esses dois eram unidos e o quanto se gostavam. E isso parecia ser o verdadeiro obstáculo na sua tentativa de conquistar Alex. Ela nem tinha comentado nada com a amiga, com medo do quê esta poderia pensar dela. Era como se Amanda sentisse vergonha por estar olhando para um outro homem, sem ser seu marido. Mesmo ela tendo certeza de que jamais Laura a condenaria, ela não se sentia à vontade para comentar nada a respeito do quê ela sentia por Alex. Talvez fosse, no fundo, porque sentia como contar para o próprio Alex, tamanha era a ligação que existia entre ele e Laura.  Mas eu acho que vou acabar contando para ela. Eu preciso dividir esse segredo com alguém.  Era cada vez mais difícil carregar esse  “segredo” sozinha. Quanto ao fato de achar que Laura poderia ser uma “ameaça” em potencial, aos poucos Amanda se convencia de que não precisava ter medo da amiga, já que, em todos esses anos, nunca tinha “reatado” com Alex. Eles eram amigos. Sem contar que na vida de Laura, agora, havia Eric. A existência de Eric, aos poucos, tinha-a convencido de que Laura não era uma concorrente perigosa, pois estava envolvida com ele. No entanto, o quê a preocupava, era Alex. Pois ela sabia que ele, sim, talvez ainda poderia estar ligado a Laura. Mesmo tendo casado com outra.  Meu Deus... Um terceiro homem amando essa mulher! Não acredito!  Amanda riu. No fundo, ela sabia que, o quê unia Alex e Laura sempre seria amizade. Mesmo ele querendo mais. O destino dos dois tinha sido selado havia muitos anos: eles não tinham condições de conviver juntos. As personalidades não combinavam. Pensar nisso  a deixou aliviada e deu-lhe esperanças renovadas de ir à luta por ele.

“Ir à luta por ele”.  Estou falando como Laura.  Isso a deixou feliz. Como era bom ter alguma esperança! A campainha a tirou de seus pensamentos. – Chegamos!  Eram os meninos, com a querida e adorada sogra! Amanda reprimiu uma careta de nervosismo ao escutar a voz azeda (sim, porque tudo, nessa mulher, soava-lhe azedo) de dona Yolanda. – E trouxemos peixe para o almoço, dizia a voz azeda. Amanda riu. O quê é do mar, ao mar pertence, teve vontade de jogar na cara da sogra. Mas mudou de idéia. Afinal, ela estava quase feliz por estar com esperanças renovadas em relação a Alex.  Não vou deixar essa bruxa azeda estragar o meu dia,  pensou ela, em tempo. 

Paulo e Bruno já estavam na cozinha, tirando o peixe do saquinho de plástico, loucos para preparar alguma receita maluca. – Esperem um pouco, meninos! Isto aqui não é laboratório de química! Fazendo o favor de me dar uma licencinha! Vocês podem ser meus ajudantes. Enquanto isso, dona Yolanda, a senhora arruma a mesa. Em poucos segundos, cada um tinha sua tarefa atribuída. Afinal, em sua casa, “dona Yolanda” estava em seu território, sujeita a obedecer às suas regras! A sogra obedeceu em silêncio, uma careta exasperada no rosto. Amanda fingiu não ver nada.

Ela nunca tinha gostado da sogra. E nunca tinha feito nenhum esforço para tentar mudar a situação. Afinal, ela não via motivo nenhum para isso, já que nem do marido ela gostava particularmente. Marcos. Ele também nunca tinha se mostrado um homem apaixonado... Na verdade, o quê Marcos sentia por ela era uma grande atração física e isso, para ele, era o suficiente para justificar sua vontade de casar com ela. Mesmo após tantos anos, ela continuava despertando nele uma atração irresistível. Ele a achava simplesmente linda e desejável. Para ele, o casamento se resumia a isso. Ele tinha um ótimo trabalho, uma mulher sexualmente atraente e que lhe proporcionava momentos excitantes na cama, dois filhos lindos. Que mais ele podia desejar? Era esse o mundo de Marcos. Nada muito edificante... Principalmente pela ordem de prioridades, pensou Amanda. Ela ainda ficava na dúvida se os filhos vinham antes ou depois dela. E, para dizer a verdade, ela torcia para que eles viessem antes dela na lista de “prioridades” do marido.

Ao pensar em Marcos, a tristeza começou a tomar conta dela. Amanda continuou a preparar o peixe. Por sorte, Paulo e Bruno estavam aí, ajudando-a (fazendo a maior bagunça, o quê a fez sorrir). Os seus filhos tinham sido o único raio de sol em sua vida. Por eles, faria qualquer coisa. Eram dois meninos apaixonantes. Paulo, do alto do seus doze anos e Bruno, quase tão “grande” quanto o irmão tão admirado, dez anos. Eles tinham sido crianças “difíceis”,  para os padrões sociais, isso sim, pensou ela. Na verdade, eram dois meninos cheios de vida e com uma vontade de viver contagiosa e muitas vezes invejada por outras pessoas. Eles “tumultuavam” o ambiente em volta deles, mas sempre eram queridos por todos aqueles que conseguiam enxergar além dos limites endurecidos da sociedade. Aonde fossem, juntava crianças querendo brincar com eles. Os dois conseguiam ser simpáticos, cativantes, cada um a seu modo. Paulo, sempre mais quieto,  Bruno , um furacão risonho. Na escola... Eu devo ser a mãe mais chamada a comparecer na escola! Talvez não fosse tanto assim, mas era verdade que, várias vezes, tinha sido  chamada na escola... Ou porque Paulo era quieto demais ou porque Bruno era agitado demais. Desde cedo tinha levado os meninos a psicólogos. E, o mais curioso (em sua maneira de ver) era que, ela própria, tinha acabado fazendo terapia (muito recentemente, era verdade). E, era graças à terapia (e a Laura), que ela tinha percebido o quanto sua vida era vazia e sem sentido, a não ser pelos filhos. Gradualmente tinha descoberto o quanto era sozinha, o quanto ela precisava de alguém que a amasse e cuidasse dela. Aos poucos, o amor que ela sentia por Alex tinha ressurgido das cinzas às quais ela o tinha condenado, ao longo dos anos. Ela achava que esse amor tinha morrido ao longo desse tempo, mas não, estava apenas adormecido. Um grito a tirou de seus pensamentos. – Mãe, a travessa! Vai cair da mesa! Paulo já estava vindo em seu socorro, tentando segurar a travessa pesada do peixe. Se não fosse por ele, o almoço ia para o chão!

Amanda colocou a travessa no forno e terminou de preparar o resto do almoço. Desta vez, prometeu a si mesma não ficar mais distraída. – como foi o passeio na feira com a vovó? E os meninos de contar, nos mínimos detalhes, o quê tinham feito. Por alguma “sorte do destino”, eles gostavam muito da velha, isto é, da avó... “Sorte do destino” não, pensou ela. É que os meninos são bons demais! Mas uma coisa Amanda tinha que admitir: a “velha” gostava muito dos meninos e sempre tinha sido uma boa avó para eles, na medida do possível, isto é,se pensarmos em suas limitações de pessoa pouco carinhosa... As desavenças das duas eram fruto do ciúme da sogra em relação ao “seu filho queridinho”... Se ela soubesse que não gosto nem um pouco do tal do filho queridinho, costumava pensar. Mas essa era uma constatação que Amanda só conseguia fazer agora, após anos de casada. E com a ajuda da terapia, com toda certeza. Outra coisa que a terapia a ajudara a enxergar (a duras penas...) era a inveja que sentia de Laura. E era muito lentamente que ela estava percebendo que, na verdade, tinha inveja do amor que unia Laura e Eric. Isto é, só agora conseguia entender, melhor, o quê sentia.

Dona Yolanda estava falando com ela já havia um tempinho, mas os gritos dos meninos contando as maravilhas da feira encobriam a voz da avó. Ambas riram da alegria das crianças e pediram para que dessem licença e aproveitassem para arrumar as malas. – daqui a pouco o pai de vocês chega e vamos para a praia! Vão logo, disse Amanda, entre um grito e outro. Os meninos saíram da cozinha correndo, apostando corrida. – O último que chega é a mulher do padre! Era impossível dizer de qual dos dois era a voz!

Continua...




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